sábado, janeiro 10, 2009

DA ESPLANADA DO MILENÁRIO - IIª SÉRIE


A equipe do Banik Ostrava 69/70

Janeiro de 1987: Recebia um telegrama oriundo da Checoslováquia. O remetente era o meu caro amigo Karel Bruckner, com quem me correspondia mensalmente, para além dos nossos encontros pessoais em tertúlias de futebol. Devo dizer que, há época, Mestre Karel levava em grande conta a minha opinião. Estávamos (eu e Karel) a lançar as bases do actual futebol geométrico em pressupostos teóricos, tarefa esta interrompida pelos seus serviços requeridos junto da futura Selecção Checa, a partir da década de 90. O tempo passou, Mestre Karel envelheceu e o vento levou essas notas de indiscutível valor científico para não sei onde. Sim, o vento, porque veio o dia em que decidi levar tais apontamentos para o sector 7 da Póvoa de Varzim e nunca almejei pôr-lhes a vista em cima…
Mas naquele ano de 87, o telegrama de Mestre Karel trazia-me as seguintes novas:


“Caro Péricles,
Como te encontras? Desejo sinceramente que ainda sejas um sobrevivente nesse mundo cão capitalista. Já te apercebeste da geometria do futebol do Costeado? Eu não te disse? Pois é, como tu vês, continuo assim, sempre sábio… Eheh!
Mas não é o Futebol que me leva até ti desta vez. Venho informar-te que celebro as bodas de prata com a minha querida Martina na próxima semana. Como é lógico, gostaria de contar com a tua presença aqui em Praga, onde podemos trocar algumas impressões sobre as teses que estamos a desenvolver. Não aceito um não como resposta…
Depois telefona a informar a que horas chegas, para eu preparar aqui as coisas.
Até breve”



Evidentemente, acedi ao convite do meu amigo e Mestre Bruckner, Karel. Nessa altura, tinha alguns conhecimentos junto do PCUS, o Partido Comunista da União Soviética, pelo que obtive o visto de entrada na ex-URSS com relativa facilidade. Aterrei em Praga e dirigi-me de imediato para Praha 3, zona residencial de Karel. Ao soar das pancadas na porta, atendeu Karel com um saudoso abraço. Entrei e Karel disse-me: “Péricles, já sabes, aqui em casa estás à vontade. Senta-te que eu só vou ali num instante fazer um cocó”. Retorqui: “Karel, toma o teu tempo!”. Sentei-me e olhei pela janela. Aquele manto branco composto por neve e que cobria Praga era encantador. Estive breves segundos a contemplá-lo até me levantar. Entrou na sala a sempre simpática Sr.ª D.ª Martina Bruckner. De pronto, mostrou-me o seu espírito hospitaleiro e serviu-me um cálice de Porto, enquanto me mostrava os seus lindos bordados. Até que chegou Karel a limpar as mãos a uma toalha. Karel sentou-se na sua poltrona, diante de mim e ao lado da lareira acesa, e o que se segue mais não é que um denso exercício de pura intelectualidade:


Karel – “Péricles, vou-te fornecer desde já 4 nomes que tens de me prometer que não os esqueces…”
Péricles – “Com certeza Mestre. Que nomes são esses?”
– “Pavel Kuka, Pavel Nedved, Kadlec e Karel Poborsky!”
– “Muito bem. Mas que há de especial nestes nomes?”
– “É com eles que irei reformular o conceito ultrapassado de Futebol Geométrico…”
– “Como? Qual a base de que o Grande Mestre parte para alcançar esse desiderato?”
– “Péricles, é relativamente simples. Não menosprezando o futebol de Masopust e Panenka, partimos de um futebol de circulação rápida de bola, altamente linear…”
– “Mas Karel, desculpa interromper, não será mais eficaz adoptar as raízes do futebol angolano, de um avançado qualquer, chamemos de Santana, ou Carlos, ou até Santana Carlos, para ganhar um maior sentido de baliza?”
– “Calma… Vais ver que não é por aí. Se me deixares terminar vais perceber…”
– “Força aí então…”
– “Como te dizia, pegamos nesse futebol de Masopust, da década de 50, de circulação rápida e altamente linear, na magia de Antonin Panenka, mas derivamos o fio de jogo pelas alas. Continuaria a ser um futebol de um/dois toques, mas agora de maior largura, mais abrangente, menos compacto e estático, abarcando a quase totalidade do terreno de jogo…”
– “Estou a ver…”
– “A grande base teórica deste conceito encontra-se na equipa do Banik Ostrava de 69/70. Não sei se sabes, mas foi precisamente esta equipa do Banik Ostrava que, nessa mesma época, apadrinhou a estreia europeia do teu Vitória…”
– “A sério? Não sabia…”
– “Mas olha que foi. Na tal Taça das Cidades com Feira, ainda na primeira eliminatória, o teu Vitória, de Peres, Artur e Augusto, teve o “prazer” de sentir o vendaval táctico de que te falo e que pretendo transpor para a actualidade. Sob a batuta de Michalik, Bartalski e Mazanik, foi desenvolvido um conceito que, não descurando o futebol objectivista, deu maior largura, mobilidade e profundidade aos princípios do jogo.”
– “Karel, mas será que o Futebol Ocidental, onde se inclui o meu Vitória de então, mais técnico e versátil, não seria susceptível de colocar em crise esses teus princípios basilares de abordagem ao jogo?”
– “(risos). Péricles, isso seria tão improvável como veres a tua cidade coberta por este lindíssimo manto branco composto por neve e que podes contemplar aqui em Praga…”
– “Acredito Mestre… Mas posso-lhe colocar uma questão?”
– “Claro!”
– “Satisfaz a minha curiosidade, quanto é que ficou esse confronto?”
– “Bem… Na primeira mão, em Guimarães, vocês venceram 1-0… Mas sabes como é, as viagens, o cansaço e tal…”
– “E na segunda mão?”
– “Empatámos 1-1…”

Não consegui deixar escapar aquele sorriso. Mestre Karel não terá gostado por aí além, ficou fodido vá lá, e convidou-me “amigavelmente” a sair. Fui de malas aviadas procurar um hotel para pernoitar por entre aquele frio tremendo. E nunca mais me correspondi com Karel. O facto é que, com o Mestre no Comando, a República Checa de Pavel Kuka, Pavel Nedved, Kadlec e Karel Poborsky, brilhou que se fartou em 96 e 98. E, tal como naquele dia de Janeiro de 87 em Praga, Guimarães ficou ontem coberta por um lindíssimo manto branco composto por neve, absolutamente encantador…

Aquele abraço,


PÉRICLES

1 comentário:

  1. Eu almocei na Penha e pude disfrutar não de qualquer jogo de futebol, mas sim de uma bela cidade branca!!!

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