quarta-feira, maio 03, 2006

LEMBRAR





"Memento" foi realizado pelo britânico Christopher Nolan e tem tido um acolhimento quase unânime da crítica e do público…. Embora a sua construção seja a de um thriller (onde nem falta a mulher fatal), o mais importante não é isso, nem sequer o facto de ser contado da forma que sabemos... o mais interessante é a subversão da noção que nós, enquanto espectadores, temos da memória, do tempo, da "verdade", seja no filme, seja na vida "real"…
A história, contada de forma "normal", resultaria tão bem? Provavelmente, não. Mas como, se o que interessa aqui são as várias interpretações que podemos dar à mesma coisa ou que aquilo que ouvimos ou vemos não é fiável? Quantas vezes já escutámos versões diferentes do mesmo acontecimento? É como aquele velho jogo de contar uma história ao ouvido de alguém, que a contará à pessoa do lado e por aí adiante, com os resultados que conhecemos quando chegar à 7.ª ou 8.ª pessoa. A memória não é de confiança.

O filme acredita que somos pessoas inteligentes e não nos dá tudo feito, como fazem a maioria dos filmes hoje em dia, que pensam por nós. Ver "Memento" é uma experiência fascinante e absorvente, frustrante e irritante: "há quanto tempo ocorreu o crime?"; "será que Leonard matou o homem certo?"; "o assassino ainda está vivo?".
Obriga-nos a pensar muito para além do seu fim, já que esse fim é o início e é, em si mesmo, "aberto", sujeito a várias interpretações. Se "Memento" for visto em grupo, dará depois uma excelente conversa de café.

Somos obrigados a não tirar os olhos do filme, a analisar cada pormenor que nos é mostrado ("porque razão o vidro da porta está partido" ou, imediatamente antes, "porque razão o vidro da porta NÃO está partido"), a montar o filme mentalmente, a tentar dar um sentido a coisas que parecem não ter sentido nenhum. "Memento" desafia-nos como desafia o protagonista.

Inicialmente, pode ser difícil para nós, espectadores, adaptarmo-nos ao mecanismo do filme: não fazemos a mínima ideia do que se passa, à semelhança do protagonista. O realizador ajuda-nos e cada segmento termina com uma frase ou uma acção que tinhamos visto no momento anterior, o que torna as coisas mais fáceis. No entanto, como já vimos, para as coisas não serem TÃO fáceis, a conclusão que tiramos perante este quase "segundo visionamento" muda radicalmente.

Uma segunda história decorre em tempo incerto, com fotografia a preto e branco, com Leonard a falar com alguém ao telefone, a quem relata a história de Sammy Jenkins, muito parecida com a sua. Com quem está ele a falar, quando decorre essa acção? E porque tem ele tatuado "Não atendas o telefone" e está a fazer precisamente o contrário?
A história principal é construída numa série de peças intercaladas a cores de segmentos que podem ter mais de 3 minutos (nunca ultrapassam os 10), que nos vão dando uma série de revelações, enquanto Leonard vagueia por uma Los Angeles, solitária, onde a maioria das pessoas não tem identidade, não existe. O grande trunfo de "Memento" não é tanto a história, mas a forma como é contada: a técnica e a estrutura (aqui com resultados extremamente felizes).

Os actores são excelentes, mas a grande estrela, o que vamos recordar no fim, é a forma como fomos entretidos, como o filme foi contado, fotografado e montado para causar este efeito viciante de quase tornar necessário um segundo visionamento… provavelmente para continuarmos sem conclusões definitivas.
As motivações de Natalie não são inocentes. Naquela que é uma das cenas mais felizes do filme, vemos Leonard a remexer papelada e Natalie a sair do carro, entrar em casa, com marcas de ter sido agredida. Ele pergunta-lhe quem lhe fez aquilo, ela responde-lhe que foi o namorado.
Depois, a cena volta uns minutos atrás, com Leonard a entrar nessa mesma casa e… No entanto, continuamos a recuar (avançar) e vemos o momento anterior a essa cena comovente (ou que julgávamos que era)… os nossos sentidos, como a nossa memória, podem-nos trair e a nossa interpretação muda radicalmente. A mulher com quem Leonard acordou chama-se Natalie (Carrie-Anne Moss), uma empregada de bar cuja polaroid diz "ela também perdeu alguém, vai-te ajudar por pena".

"Memento" ("lembrar" em latim) começa de tal forma que deveria ser aplicado a este filme a regra que existe para os espectáculos de música clássica: proibir a entrada depois do seu início. Vemos alguém a pegar numa polaroid de um cadáver, que começa a desprocessar-se lentamente, a voltar à respectiva máquina fotográfica, um espirro de sangue provocado por um tiro que vem logo a seguir (antes), alguém a tentar explicar-se. Nós, enquanto indivíduos, podemos decidir "esquecer" algo que não nos agrada, algo com que não nos queremos confrontar.

O início e final de "Memento" são, por isso, particularmente chocantes, não tanto no que mostram, mas pela forma como questionam e jogam com as nossas certezas e, principalmente, pela forma como constatamos, em toda a sua dimensão, o destino cruel da personagem principal. No fundo, a ambíguidade de acreditar naquilo que queremos…Fica a dica...


1 comentário:

  1. Meu caro serguey lamento mas o teu pedido terá que ser dilatado no tempo porque já me anticipei e pedi-o emprestado ao nosso estimado Sr Cimento. Como "sempre" tive uma óptima ideia, porque não realizar-mos sessões de cinema turcas onde o vinho e o presunto substitui a cola e a pipoca por favor é que não tinha comparação parece que estou a ver como aquilo ia acabar..:) parabens cimento por mais uma bela e estimulante crónica.

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