DA ESPLANADA DO MILENÁRIO

René Higuita: Louco ou excêntrico, tanto faz...

O escorpião que eu vi em Wembley, para a posteridade

RÉNÉ HIGUITA

ENTRE O FUTEBOL E UM CARTEL, O "ESCORPIÃO" DE WEMBLEY

por: Péricles, Iru Dito (o que foi dado por não dito...)

Caro leitor, um rejubilante bem-haja!

Escrevo-lhe hoje em estado clínico altamente preocupante. Aliás, se me encontrasse agora em qualquer unidade hospitalar seguramente que estaria nos cuidados intensivos... Descanse! Jamais pretenderia alarmar o meu fiel leitor sem motivo preocupante. Não fui protagonista de algum sinistro automóvel nem me parou a digestão após uma relaxante "banhoca"... Simplesmente, após dois fins-de-semana prolongados, prolongados foram igualmente os estados de delírio e loucura que assolaram esta comunidade turca... Se me pedisse para definir estas temporadas no Gerês e Vila do Conde numa só palavra, indubitavelmente a resposta que lhe daria só poderia ser uma: Turco!

Mas porque a loucura caminhou comigo de braço dado durante esta semana, não me conseguia abstrair daquele momento que eu assisti, em Londres, naquele fim de tarde/noite. Como sempre, prepare-se! Estou prestes a partilhá-lo consigo...

Setembro de 1995. No mítico Wembley defrontavam-se Inglaterra e Colômbia num amistoso. Duas horas antes aterrava eu em Heathrow com destino ao grande palco em terras de Sua Majestade. Já no estádio, recordo de olhar em meu redor e avistar toda a "nata" do futebol de então que, tal como eu, tanto vestiam a camisola do apreciador do espectáculo como, num ápice, empunhavam o bloquinho e a esferográfica e desatavam a tirar notas, como se quer que seja um crítico ou analista diligente. Via Sir Robson à conversa com Kevin Keegan. Subitamente, participava numa interessante discussão sobre "Futebol deveras defensivo" juntamente com grandes Mestres como Arrigo Sacchi, Vítor Urbano e Otto Rehaggel. As equipas entravam em campo, era hora de assistir ao embate. Todos se dirigiram ordeiramente para os seus postos. E o desafio começava...

Confesso que desde o início eu não tirava os olhos daquele keeper... Não o da casa, mas sim o outro. Foi uma espécie de juízo de prognose: no meu íntimo, eu sabia que aquela criatura algo tribal iria proporcionar-me, aqui e ali, um momento para a posteridade. E assim aconteceu, aos 22 minutos daquela partida... Algo que, infelizmente, a minha Canon (já na época com zoom) seria incapaz de captar...

O relógio do encontro marcava 22 minutos. Num desdobramento ofensivo exemplar por parte da squadra britanica, Jamie Redknapp seguia no flanco com a bola nos pés. Ensaia um cruzamento mal direcionado e a bola toma o rumo da baliza. A plateia começa a sentar-se, já que, segundo os parâmetros da normalidade, Higuita "encaixaria" facilmente aquela bola nos seus braços. Mas não! JOSÉ RÉNÉ HIGUITA ZAPATA, nascido a 28 de Agosto de 1966, em Medellín, resolve maravilhar o mundo e, em mergulho, flecte as pernas para trás, num movimento ascendente, o movimento típico de um escorpião, portanto, pontapeando a bola com os calcanhares para longe da baliza. E, note-se, fa-lo em cima da linha de baliza... Esteticamente, a imagem que posso transmitir ao meu amigo leitor que mais se assemelha ao sucedido é um mergulho de EL CONEJO no mar de Vila do Conde... Asseguro-lhe que os restantes 68 minutos do encontro não passariam de protocolo. Não mais nos lembramos do hat-trick de Owen, dos tentos de Yepes e Ramirez e do consequente 3-2 final. A loucura dos homens sobrepõe-se sempre à loucura dos resultados! E porque assim o é, Higuita figurará para todo o sempre nos anais da História como um dos loucos ou excêntricos do Futebol Mundial, juntamente com Tunenka ou George Best... A comprová-lo, as sábias palavras de Terry Venables, seleccionador inglês à data: "Nunca vi nada assim!!! Disseram-me que faz isto a todo o tempo no seu país! Deve ser por isso que os seus últimos 3 treinadores tiveram ataques cardíacos...". No elevador, à saída do estádio, eu seguia acompanhado pelo colossal Gordon Banks, que escassos meses antes do nascimento do mesmo Higuita protagonizaria a "defesa do século" no Mundial de 66. Abordado por alguns jornalistas que se acercaram do local, o gigante inglês atira o seguinte: "Se fizesse essa defesa por Inglaterra seria a sua última internacionalização"...

A completar o seu curriculum, Higuita, o homem que uma vez disse "a minha filosofia é divertir-me e divertir" regista o seguinte:

• Em 1991, visita Pablo Escobar na prisão, ex-chefão do cartel de Medellín, de quem admitiu ser amigo;
• É preso em 1993 por intermediar o pedido de resgate de um sequestro para um cartel. Consequentemente, é afastado da selecção colombiana em 94, retomando em 95 para o "escorpião";
• Entrega de bandeja a Roger Milla o golo que qualificou a selecção dos Camarões (estes sem alho...), sem que tenha sido alvejado em solo colombiano, ao contrário do que viria a suceder 4 anos mais tarde com o seu compatriota Escobar;
• É excluido do Aucas do Equador e suspenso pela FEF a 23 de Novembro de 2004, depois de acusar cocaína num controle anti-doping.

Cumpre o presente para dizer o seguinte: Depois de "borrar" substancialmente o seu ficheiro, este homem, que assume o desejo de ver a sua biografia escrita por Gabriel Garcia Marquez ( já visiono Poirot, no comboio Guimarães-Porto, devorando violentamente sábias páginas...), figura, com o seu "escorpião", em 94º nos 100 Melhores Momentos do Desporto do Channel 4. Ou seja, este homem, possuído pela sua loucura, foi capaz de se tornar num dos grandes nomes do Futebol Mundial, hoje herdeiro de Carrizo, como Dassaev se tornaria herdeiro de Lev Yashin ou Vital de Manuel Bento. E a sua loucura seria assim uma locura sã. Como é sã a loucura de Michael Knight quando se tranca dentro da mala de um carro! Como é sã a loucura de Tunenka quando percorre a A1 até Coimbra quando o seu Rolex aponta 4 da manhã! E disto não teremos remorsos quando recordarmos... Dispensamos, de todo, a loucura de outros, uma loucura assassina!!! E porque abomino, eis o que eu não quero recordar:

TENHAM VERGONHA!!!

Aquele abraço,

PÉRICLES

Simplesmente louco ou simplesmente perfeito! A homenagem que há muito se impunha. Também nós, Ambiente Turco, te louvamos e mui humildemente te dizemos: "OBRIGADO, EL PIBE!!!"...